quinta-feira, 7 de outubro de 2010

(Texto em Construção)

Capítulo I
O Sol erguia-se na tarde calma, lançando raios de fogo sobre a terra sedenta, como se quisesse derreter as esperanças dos que esperavam esparsos pingos de chuva para amenizar aquele Verão abrasador. Apenas uma ligeira brisa passava despercebida por entre os ramos das árvores plantadas ao longo da avenida, arrastando consigo o perfume doce das fragrâncias imensas que apanhava pelo caminho desde o alto da colina próxima.
Aqueles breves momentos em que a tarde ainda não se faz tarde, eram saboreados como mimos profundos, quase todos os dias, pelos amigos inseparáveis que à mesma hora, se juntavam para a tertúlia habitual. Tudo ali se discutia, desde o futebol, tema sempre apetecível, à política, passando pela degustação dos vinhos que por ali, o senhor Francisco, dono do café Serra, lhes servia. João era o mais velho dos três. Homem sabido que retirou o seu saber da escola que frequentou durante alguns anos e da vida que lhe proporcionou ensinamentos que nas carteiras da sala de aula não lhe seria possível obter. Casado, pai de três filhos ainda jovens, gostava de conviver e expor a sua opinião sobre todas as coisas que viessem à baila. A sua quinta era a jóia que sempre arvorava em frente de todos quantos falavam de agricultura.
Paulo e Daniel eram um pouco mais novos. Todos tinham frequentado a mesma escola da vila e todos tinham sido colegas durante esses anos de estudo. Só o Paulo tinha passado algum tempo no Porto onde frequentou a faculdade de engenharia, sem contudo, ter obtido qualquer sucesso. Com o segundo ano de engenharia, regressou à terra natal onde era funcionário público há já alguns anos. Daniel, também já casado, por ali tinha ficado, após acabados os estudos do secundário. Sempre gostara das engenhocas eléctricas e dedicara-se a esse ramo. Electricista de profissão, sempre tinha levado a sua vida e a da família, com a dignidade e a honestidade de quem quer vencer as agruras do dia-a-dia e as barreiras que a existência contém.
- Francisco, traz mais três cervejas. Este calor ainda nos há-de matar – disse o João.
- Boa ideia. O Sol até nos cega e ainda não são sete horas! Vai lindo o Verão, vai, vai – desabafou o Daniel desapertando a camisa azul clara que quase sempre vestia.
- Se não chover estás mal com a tua agricultura João – adiantou o Paulo.
- Há-de chover cum mil raios! Então até fins de Agosto não há-de cair pinga d’água? Agora não faz muita falta, a chuva, mas em Setembro é bom que chova.
- Não te apoquentes homem, que há-de chover – disse o Daniel.
- Ora aqui estão as cervejinhas. Bebam que estão geladas.
Com as cervejas, Francisco tinha trazido mais uns tremoços, guloseima que eles agradeciam.
O Sol parecia uma bola de fogo e era impossível olhá-lo de frente mesmo àquela hora. Na esplanada do café não havia mais ninguém. Eles ocupavam o pouco espaço que estava à sombra, naquela tarde de sábado. O fim-de-semana era aproveitado para pôr a conversa em dia e o senhor Francisco já contava com eles e com as suas tertúlias sempre alegres e amenas.
- Que maravilha! Esta ainda está melhor que a última que bebi – adiantou o João com um estalido na boca, sinónimo de agrado intenso.
- Está, sim senhor – concordou o Paulo.
- É verdade, está esplêndida – anuiu o Daniel. – Ainda nos há-de dar cabo da garganta.
- Nada disso Daniel. Assim é que está boa. É preciso matar a sede e este calor terrível que nos abrasa.
- Ora por falar em matar, sabiam que este ano é o ano do Centenário? – inquiriu o Paulo.
- Do centenário? – perguntaram os outros dois ao mesmo tempo.
- Sim. O Centenário da República.
- Da República? Qual República? – quis saber o Daniel.
- Ora qual República! Da nossa.
- Da nossa? Então nós não estamos na República? – questionou o João.
- Estamos, claro. Mas faz cem anos que estamos numa República.
- Olha e é a das bananas!- riu o João.
- És capaz de ter razão, mas há cem anos que temos República – informou o Paulo.
- Cem anos!? Tanto tempo? – disse em ar de espanto o João.
- É verdade. E sabem que foi um professor primário de Vinhais que iniciou praticamente esse processo?
- Ora Paulo, lá estás tu com as tuas coisas. De Vinhais! E quem era o fulano? – quis saber o Daniel.
- Foi o Manuel Buíça. Tinha sido expulso do Exército. Diz-se que com um tiro certeiro fez a bala atravessar o pescoço do Rei D. Carlos e depois ainda atirou no filho mais novo D. Manuel, que ficou ligeiramente ferido – informou o Paulo.
- O homem era de fibra – deixou escapar o João.
- Era sim senhor. Mas não foi o único a atirar. Houve um tiroteio terrível, durante alguns minutos, acabando por morrer também o filho herdeiro D. Luís.
- E depois? – questionou o Daniel.
- Depois, morto o Rei e o herdeiro ao trono, Luís Filipe, sobe ao trono o filho mais novo, D. Manuel. Foram tempos atribulados.
- Então, não começou logo a República!
- Claro que não João. A República só começou quando acabou a monarquia. D. Manuel II vai ainda governar dois anos. Só depois é que surge a revolução do 5 de Outubro de 1910.
- E é aí que começa a República, não é? – perguntou o João sempre curioso.
-É isso. Começa então a primeira República. Há cem anos, percebes?
- Estou a perceber, Paulo. Estou a perceber. Parece que me lembro de ter estudado qualquer coisa sobre isso, mas já lá vai muito tempo.
- Pois é tempo de recordar. Faz este ano cem anos que caiu a monarquia e começou a República. A primeira república.
- Então ainda estamos na primeira República? – perguntou o Daniel.
- Não – respondeu o Paulo. – Estamos na Terceira.
- Terceira? Então as outras duas passaram por mim e não as vi? – riu o João.
- Lá isso não sei, mas esta última não deve ter passado assim tão de lado, pois aconteceu há trinta e tal anos e tu já eras garoto crescido em 1974.
- Pois, disso ainda me lembro. Foi a Revolução do 25 de Abril, não foi?
- Foi. Claro que foi.
- E que tem isso a ver com a terceira República?
- Ora, João, tu és burro ou quê? – desabafou o Daniel.
- Eu, burro? Claro que não.
- Então devias saber que com a revolução de Abril começou outro regime político.
- Pois claro que começou. Até falavam da democracia e da liberdade.
- Ora vês. É essa liberdade que nos permite estar aqui a beber umas cervejinhas.
- Vai dar uma curva. Então antes não se podia beber? – perguntou o Daniel.
- Ele está a mangar contigo – explicou o João.
- Cá me parecia!
- O que eu quero dizer é que passou a haver mais liberdade do que havia antes do 1974.
- Já percebo. Nós éramos todos ganapos nessa altura e nem sabíamos bem o que era a República e se era nova ou velha – disse com ar de desinteresse o Daniel.
- Mas hoje já podemos e devemos saber o que se passou – rematou o Paulo.
- Tu é que és o engenheiro sabedor, tens obrigação de saber essas coisas. – disse o Daniel levando o copo de cerveja à boca.
- Pois, pois, todos falam, mas ainda ninguém disse quando foi afinal a segunda República – atirou o João à queima-roupa.
- Ora aí está uma questão inteligente. Essa é para o Paulo. Vá, diz lá tu que sabes tudo – pediu o Daniel.
- Eu não sei tudo, mas ainda sei que a segunda República foi no tempo em que governou o Salazar. Já não sei muito bem quando começou, mas isso já vou ver em casa. Amanhã já vos digo. E agora vou embora antes que a minha Maria venha a saber de mim.
- Nós também vamos. Amanhã que é Domingo encontramo-nos aqui à mesma hora, pode ser? – perguntou o João. – Sempre quero saber quando é que começou a Segunda República.
- É isso. Amanhã à mesma hora – disseram os outros.
Estavam todos de acordo em se encontrarem no dia seguinte e em continuar a tertúlia sobre a República em Portugal e a sua evolução. Afinal cem anos devem ser comemorados condignamente.


Capítulo II

A manhã de Domingo trouxe algumas pessoas à rua, apesar do calor que já se fazia sentir. Muitas dirigiram-se para a igreja para assistir ao santo sacrifício da missa, como habitualmente faziam. A tradição não se perde de um dia para o outro e esta gente habituada a seguir os ensinamentos familiares, continuava a cumprir com agrado o que aprendera desde criança. Era bonito ver as mulheres e as crianças regressarem da igreja. Enquanto os petizes corriam e saltavam pela rua, as mulheres conversavam sobre mil e uma coisas. Os homens, esses, mais atrás, falavam sobre outros assuntos mais a seu gosto como futebol ou política e nos quais as mulheres quase sempre não participavam. Depois do almoço dominical, haveria sempre tempo para mais uma conversa no café Serra, como habitualmente, saboreando mais um copo.
E como já era normal os três amigos, à tarde, lá se encontraram no café Serra, para a sua habitual tertúlia. Rondaram os assuntos banais do dia-a-dia e completamente destacado do grupo, João dizia:
- Então e a Segunda República? Sempre foste ver quando se iniciou?
- Sim, acabei por ir ver em alguns livros e fazer umas pesquisas. Todos nós devíamos estar a par da nossa História, da nossa Pátria, do nosso lugar… - argumentou Paulo com todo o seu orgulho em ser português.
- Pois lá isso é verdade, mas há muita gente que nem sabe quais foram os Presidentes que já tivemos, nem o actual que hoje temos – disse o Daniel.
- Os vossos discursos são maravilhosos, mas digam lá quando se iniciou a Segunda República? – repetia novamente o João.
- Fogo! Não sabes mesmo? – troçava o Daniel.
João, num tom sarcástico arrematou:
- E tu, sabes?
- Não.
- Pois, a Segunda República surgiu com a Revolução de 28 de Maio de 1926, num golpe de Estado dirigido pelo General Gomes da Costa.
- Um golpe militar? – inquiriu o Daniel.
- Sim. As lutas internas dilaceravam a Primeira República e dividiam a Nação. Havia dificuldades de vária ordem causadas pelos entraves da oposição face ao regime, pela desvalorização da moeda e pelas condições económico-sociais em que o país se encontrava – informou heroicamente o Paulo.
Daniel picado pelo bichinho da sabedoria e o gostinho pela História do seu país, acrescentou:
- O país mantinha-se essencialmente pela agricultura.
- Exacto. A indústria estava atrasada, o comércio demasiado fraco e de certa forma “acanhado” até – continuou o Paulo.
- Pois eles não produziam muito, é verdade. Havia um grande défice, como actualmente e existia agitação e por conseguinte, descontentamento social – disse o João, recordando alguns aspectos que a memória lhe ditava.
O calor persistia naquela tarde de Domingo. Os três amigos, depois de mais uma rodada, continuaram a conversa.
- Nos primeiros anos desta Primeira República, fiquem sabendo que acabou por renascer o sindicalismo que eclodiu em greves e manifestações. Obviamente que estas lutas internas e todas as agitações acabaram por ditar a Segunda República – relembrava o Paulo.- Já sei, a 28 de Maio de 1926 – acrescentou satisfeito, o João.
- Agora já sabes, claro – adiantou o Paulo.
- Pois, para alguma coisa valem as nossas conversas. – E virando-se para o senhor Francisco, gritou:
- Traga mais uma rodada de finos geladinhos.
- É pra já – ouviu-se de lá de dentro o dono do café responder.
- Pois ainda vos digo mais – disse o Paulo, sempre pronto para mostrar o seu saber – nesta Primeira República, os vários governos apostaram na Educação.
- Vários governos? – perguntou o João.
- Então já te esqueceste? Claro que sim e foram quarenta e sete em dezasseis anos.
- Arre cum caneco! – exclamou Daniel.
- Pois põe canecos nisso, porque foi assim mesmo – confirmou o Paulo.
- Pois que fossem, mas agora já aqui estão os nossos finos. Vamos a mais um gole rapaziada – adiantou o João.
- Ora assim é que é falar – confirmou o Daniel – A República pode esperar.
Todos riram e todos beberam mais um trago, sossegando a sede que o calor da tarde provocava. A tertúlia, essa continuaria dentro de alguns instantes. Certamente teriam ainda muito que descobrir e que discutir sobre o assunto do momento. O dia ainda tinha muitas horas pela frente.

A tarde continuava quente. O Sol aquecia uma terra sedenta e que clamava por alguma humidade que teimava em não vir. Aquele Agosto fazia lembrar o estio de outrora, em que os tementes a Deus, se aventuravam pelos campos, tentando fugir ao Sol escaldante, para ceifar o pão que o esforço e a natureza tinham conseguido. Outros tempos.
À sombra, os três amigos continuavam a conversa entrecortada pelo bebericar das cervejas que o senhor Francisco vinha trazendo para a mesa
- Agora, que estou cá a pensar, não foi na Segunda República que entrou o tão conhecido Salazar? – questionou o Daniel.
- Exactamente. Foi na Segunda República que entrou o Salazar. Salazar e não só. Foi também na Segunda República que entrou Marcelo Caetano – confirmou o colega sabichão.
- E não foi com esse mesmo Marcelo Caetano que teve fim a mesma Segunda República? – voltou Daniel à carga.
- Foi sim senhor! Acabou no dia 25 de Abril de 1974, com a conhecida Revolução dos Cravos, organizada pelo Movimento das Forças Armadas. E já agora, Daniel, sabes qual foi o motivo da revolução?
- Isso parece que sei. Não foi porque Portugal estava descontente com as medidas tomadas pelo governo, com a guerra nas colónias, as políticas fechadas, enfim, medidas de uma ditadura.
- Afinal sempre sabes alguma coisa, Daniel.
- Foi o que aprendi das conversas com o meu pai. Afinal, como diz o velho ditado, sabe mais o velho no esquecido, que o novo no lembrado.
- Só por essa, Daniel, já mereces que façamos um brinde à tua saúde! – rematou o Paulo.
- Merece sim senhor – disseram os outros dois.
E assim a conversa continuava, animada como sempre, naquela pequena esplanada, que abria o horizonte para a comprida avenida.
  Passados alguns momentos, o João que até aí tinha estado mais calado, resolveu retomar a conversa.
- Afinal estão a falar da Segunda República e do seu fim, mas há pouco dizia o Paulo que foi na Primeira República que se apostou na educação. Então o que fizeram?
- É verdade, desviamos a conversa e isso passou, mas já vos digo – adiantou o Paulo.
- Sempre gostava de saber alguma coisa, porque isto da educação deixou muito a desejar… - foi dizendo o João.
- Talvez, mas sempre vos digo que foi na Primeira República que os sucessivos governos implementaram a educação neste país. Fizeram-se mais escolas e jardins-de-infância. Criaram novos cursos superiores, novas faculdades, a escolaridade passou a ser obrigatória até à 4ª classe.
- Pois, só havia analfabetos! – constatou o Daniel.
- É verdade, grande parte da população não ia à escola, mas passou a ir – confirmou o Paulo.
- E na Segunda República não se fez nada a esse respeito? – quis saber o Daniel.
- Fez sim. O país encheu-se de escolas primárias por todo o lado. Salazar mandou construir escolas novas e quase todas iguais. Foram uma marca do Estado Novo. Aquela que está ali em baixo, ainda é dessa altura – informou o Paulo.
- Ah! Eu andei lá. Fiz lá a minha instrução primária – disse o João.
- E nós também – adiantou o Daniel, virando-se para o Paulo à procura da sua confirmação.
- É verdade. Belos tempos! – assentiu o Paulo.
E quase ao mesmo tempo, todos levaram os copos à boca para beber mais um trago.
O Sol declinava um pouco e a tarde ficava mais amena. Nem uma brisa soprava naquele sábado estival. O ar continuava abafado. Podia ser que o Domingo viesse mais fresco.
Eram quase dez horas quando se ouviram as primeiras badaladas do sino da igreja. Era o chamamento aos fiéis para a missa dominical. Daí a pouco a rua que levava à igreja, encher-se-ia de gente, como era habitual. Havia sempre uma certa curiosidade em ouvir o que o sacerdote iria dizer na sua homilia. No regresso, comentam o que tinha dito e discutiam as suas opiniões. Nada que não fosse norma por aquelas bandas e nestas ocasiões.
O Sol já aquecia, embora o dia estivesse mais ameno àquela hora da manhã.
Depois da missa, os três amigos, lá vinham discutindo o que o sacerdote tinha dito sobre a importância da igreja na sociedade, numa altura de tamanha crise onde a prudência e a contenção deveriam ser seguidas.
- Eu não sei, mas cá para mim, isto tudo são tretas – dizia o João.
- Tretas? Porquê? – questionou o Paulo, prosseguindo – então tu não achas que a igreja tem um papel importante na nossa sociedade?
- Se calhar até tem, mas eu não vejo que altere o meu comportamento – adiantou o Daniel.
- É sempre bom ouvir o que nos tem para dizer o senhor padre sobre estas coisas – retorquiu o Paulo. Vocês sabem que a igreja sempre teve uma palavra importante a dizer nas sociedades de outros tempos. Já aprendemos isso na escola.
- Eu já nem me lembro de nada disso – respondeu o Daniel. Será que teve?
- Claro que sim – disse o Paulo. E já agora que temos vindo a falar do centenário da República, sempre vos digo que a igreja era tão importante que quando começou a primeira república, o Estado logo correu a tomar posse do que a igreja tinha. Até se separou a igreja do estado.
- Então porquê? – perguntou o João.
- Por causa da sua importância. Senão fosse importante e não exercesse influência, eles não se metiam com ela – apressou-se a informar o Paulo.
- E se calhar porque era rica, não? – perguntou o Daniel.
- Sim, claro que sim. Aliás, lembro-me de que isto se chamava anticlericalismo.
- Anti … quê? – questionou o Daniel que não conseguiu apanhar o palavrão.
- Anticlericalismo. Significa ser contra a igreja – informou o sabichão-mor.
- Ah! Já estou a entender – disse o João.
- Que grandes interesseiros eram esses da primeira república – desferiu o Daniel.
- Pois, talvez, mas tinham medo da influência da igreja na sociedade daquele tempo.
- Então e o povo não fez nada? – quis saber o João.
- Fez sim. Houve manifestações e um clima de revolta por todo o lado. Havia uma instabilidade muito grande – continuou o Paulo.
- Ainda bem que tudo mudou. Agora os tempos são outros – concluiu o João.
- Pois são. Sabem uma coisa. Já cumprimos o nosso dever de cristãos, só falta cumprir o de cidadãos.
- E o que queres dizer com isso? – perguntou o Daniel.
- Quero dizer que podemos ir almoçar e depois lá nos encontraremos para a nossa conversa e a nossa cervejinha da tarde no café Serra. Combinado? – quis saber o Paulo.
- Combinado – disseram os outros dois.
- Então até mais logo – despediu-se o Paulo.
Cada um seguiu o seu caminho. Uma ligeira brisa tornava um pouco mais ameno aquele Domingo de Agosto. Os pássaros esvoaçavam de uma árvore para a outra à procura de uma sombra onde parar por instantes, dando um colorido diferente àquela manhã dominical.
A esplanada do café Serra, estava quase sem ninguém àquela hora. Esperava pelos amigos que, como era habitual, se deveriam ali reunir depois de um bom almoço, para mais um dedo de conversa. O tema, esse, seria sempre o mesmo: o centenário da República.
  Depois de um almoço agradável na companhia das suas famílias, os três amigos lá se encontraram novamente no local habitual e preferido para as suas habituais tertúlias.
Como era usual, o Paulo era o mais sabido no que dizia respeito a assuntos relacionados com a República e, assim sendo, tentava sempre adquirir o maior número de informações acerca deste assunto com o intuito de as dar a conhecer aos amigos.
- Ó João, vi que não ficaste muito esclarecido acerca do tema do anticlericalismo, não é verdade? – interrogou o Paulo.
- Sim, é verdade. Fiquei com algumas dúvidas…
- Pois agora, que falas nisso, eu também não percebi muito bem – concordou o Daniel.
- Então, eu vou tentar ser mais explícito.
- O que eu não percebi, foi quais foram as consequências que advieram do facto de o Estado ter tomado posse daquilo que era da igreja e porque é que estas duas instituições se separaram? – perguntou o João.
- Essa pergunta é matreira, mas eu acho que sou capaz de te responder – rematou o Paulo com um sorriso vitorioso.
- Também estou curioso para saber a resposta, mas antes disso… ó Francisco, traz aí umas cervejinhas geladinhas para acompanhar a nossa sessão de cinema republicano – disse o Daniel num tom irónico.
- Eu já vou matar essa tua curiosidade. Todos nós já sabemos que a 5 de Outubro de 1910 se instalou a primeira república em Portugal, certo? – adiantou o Paulo.
- Certo e, como sabes que isso já não é novidade nenhuma, passa à frente – interveio o Daniel ironicamente.
- Calma, calma! A novidade vem agora. O que vocês ainda não sabem é que a 6 de Outubro do mesmo ano, foi feita uma publicação onde se anunciava a constituição do governo provisório da República.
- Hum, por acaso lembro-me de ter ouvido falar disso, mas ainda não esclareceste a minha dúvida e eu estou ansioso para saber o porquê da separação entre o Estado e a Igreja – acrescentou o João todo empolgado.
- Bem, vocês hoje ainda vão ter um ataque cardíaco devido ao excesso de curiosidade – disse o Paulo rindo – mas eu vou já explicar a parte por que tanto anseiam – explicou o Paulo.
- Continuando o meu raciocínio, com a entrada deste governo provisório, a igreja católica sofreu algumas consequências desagradáveis – continuou o Paulo.
- E quais foram essas medidas? – interrogou o Daniel.
- Olha, a que mais desagradou à igreja foi, sobretudo, a expulsão da Companhia de Jesus e das Ordens do Clero Regular.
- Ah… agora estou a perceber a razão de tamanha revolta por parte do povo. Eles tinham grande fé na igreja e é claro que este facto lhes desagradou – disse o Daniel.
- Pois é Daniel e as medidas não se resumiram a isto. Também encerraram conventos, proibiram o ensino religioso nas escolas, houve a abolição do juramento religioso nas cerimónias civis, entre muitas outras coisas – explicou o Paulo.
- Então parece que tinham medo da força da igreja, não? – concluiu o Daniel.
- Claro que sim. A igreja tinha muita força e importância na sociedade e eles quiseram acabar com isso – informou o Paulo.
- Hum, agora também entendo o porquê do “divórcio” entre o Estado e a Igreja. E quando ocorre o novo casamento? – interrogou o João num tom divertido.
- Agora que falas em casamento, nessa área também houve mudanças. O governo provisório promoveu a legalidade dos casamentos civis e a igualdade entre homens e mulheres no casamento.
- Cum caneco!!! Tu percebes a potes disto, Paulo – comentou o João surpreendido.
- Ora, ora. E por falar em canecos, com esta conversa toda, o meu copo ainda está cheio – confessou o Paulo.
Todos riram da constatação do Paulo. O ambiente de brincadeira continuou e os três amigos beberam mais uns copos de cerveja, acompanhados pela alegria de terem adquirido novos conhecimentos acerca de Portugal e da sua República já centenária.
Regressaram a suas casas já a meio da tarde. O calor ainda era muito e as sombras que, ao longo da avenida as árvores iam fazendo, chamavam os passeantes para a sua beira.
O Paulo morava ao fundo da avenida, numa rua perpendicular, numa casinha toda branca que ele próprio tinha mandado construir, alguns anos atrás. Sentia-se lá bem e até era invejado pela sua comodidade e bem-estar, mas ele não se importava com isso. Era amigo de toda a gente e todos o estimavam, assim como à sua família. Tinha uma filha linda como o Sol. Era a Joana. Tinha sete anos. Era a sua delícia e tudo fazia para lhe dar o que fosse preciso. O mimo era mais que muito.
- Joaninha! – chamou Paulo ao entrar em casa.
- Então só agora Paulo? – questionou a esposa. – Estiveste outra vez com os amigos do costume?
- Estive, sim – admitiu.
- É sempre o mesmo, não é? A mesma conversa, os mesmos copos e mais nada.
- Não, mulher. Agora andamos às voltas com o Centenário da República Portuguesa.
- Centenário de quê?
- Da República. Não sabias que este ano faz um século que vivemos em regime republicano?
- Sabia que vivemos numa república, mas que faz cem anos … não.
- Pois é verdade. Os meus amigos andam entusiasmados com estas coisas da república e pronto. Falamos sobre isso.
- Está bem. Olha, aí vem a nossa filha.
- Papá, papá! Já chegaste.
E num salto, atirou-se para o colo do pai que abriu os braços para a receber. Enrolou-se ao pescoço do pai e apertou com tanta força que ele teve de pedir-lhe para abrandar o seu entusiasmo.
- Joaninha, queres-me matar ou quê?
- Não, papá. Eu gosto muito de ti – disse a garota magoada.
- Pronto, eu sei disso, mas apertaste-me tanto que me faltava o ar.
- Desculpa, paizinho. Eu estava cheia de saudades tuas.
Era sempre assim. Joana admirava o pai e tinha por ele um carinho muito especial. A sua ausência, ainda que momentânea, era sentida e, o seu regresso celebrado efusivamente.
- O jantar está quase pronto, Paulo – avisou Lucília, a sua esposa.
- Óptimo. Já tenho alguma fome – disse o marido.
Lucília era uma mulher interessante. Dois anos mais nova, conheceram-se na escola onde todos estudaram. Feito o secundário, também ela tinha ficado por ali e por lá tinha conseguido um emprego nas Finanças, onde também era muito conceituada. Lucília tinha um corpo esbelto. Cabelo aloirado, comprido e de olhos azuis num rosto alegre, jovial e bonito, ela era a jóia que Paulo tanto estimava e de quem se orgulhava. Os seus amigos gostavam muito dela. Era uma pessoa alegre e sempre com um brilhozinho nos olhos. As tristezas passavam-lhe ao lado.
- Joaninha, vai lavar as mãos para irmos para a mesa – disse Lucília.
- Vou já.
- Não te demores – pediu a mãe.
- E tu, Paulo, já te podes sentar. Fiz um dos teus pratos favoritos.
- Ai sim? E qual é? – quis saber ele.
- Cozido à portuguesa.
- Que maravilha! Já estava com saudades de comer isso.
- Não estavas a contar, pois não?
- Não. Sinceramente, não. Ainda bem que te lembraste de fazer cozido. Eu adoro esta comida.
- Pois eu sei. Então mata as saudades.
- Mas a Joaninha não gosta de chouriça e de salpicão – disse o Paulo.
- Não te preocupes. Come frango e vitela. Ela não tem problemas.
- Pensas em tudo, como sempre. Claro que ela não dispensa o frango. Muito gosta de frango, esta rapariga!
- Gosto, gosto – disse Joana que tinha ouvido a parte final da conversa. – Há frango mãe?
- Há. E também há batatinhas cozidas e couves.
- Couves? Mas…
- Mas… nada! As couvinhas fazem bem e tu tens de comer nem que seja só um bocadinho – retorquiu a mãe.
- Oh mãe, eu não …
- Joaninha. Não arranjes desculpas – pediu Paulo. Vais comer couves e pronto.
- Mas sabem mal, pai.
- Sabem mal? Não sabem não. Vais ver que sabem muito bem.
- Está bem. Eu vou comer, mas só uma – anuiu Joana.
- Combinado – disseram os dois em simultâneo.
Tudo correu bem. Comeram, divertiram-se e foram ver um pouco de televisão. O fim-de-semana estava a chegar ao fim. Uma nova semana começava no dia seguinte e era preciso deitar cedo.
Alguns minutos depois de estar em frente à televisão, Joana começou a dormitar. O tempo de folia chegava ao fim. O João-Pestana clamava pela sua pupila. A mãe pegou nela e foi deitá-la, como sempre fazia. Só acordaria pela manhã, depois de um sono profundo.

Capítulo III

 
    O mês de Agosto continuava em todo o seu esplendor, lídimo representante do tempo estival e, ao mesmo tempo, época de veraneio aproveitada pelos muitos emigrantes que regressavam à sua terra para passar as férias com a família. Era o tempo dos encontros, dos bons momentos, das recordações, dos convívios e a altura de matar todas as saudades.
    Os dias corriam céleres em direcção ao final do mês e por isso, também a azáfama dos que se preparavam para deixar a família e os amigos, era cada vez maior numa tentativa de abarcar tudo e todos num só abraço, num só momento. Assim, quase todos se encontravam no dia de feira, no fim-de-semana, na missa e no café Central. Todos aproveitavam os momentos que tinham para trocar impressões, para conversar sobre o que a ausência impedia, para falar de planos futuros, enfim, para simplesmente falar.
Era sexta-feira, dia de feira. Logo pela manhã se sentia o burburinho que era habitual nestes dias onde todos iam à feira para comprar ou vender alguma coisa ou simplesmente para ver os amigos e conhecer mais alguém. Parecia que era dia de festa. As pessoas vestiam de forma mais cuidada, andavam mais atarefadas, mais despertas, mais conversadoras. Todos se cumprimentavam, todos falavam, todos andavam num vai-e-vem louco, como se o tempo estivesse quase a parar e se esgotasse dentro em pouco.
Era impossível não notar na juventude que se passeava pelas ruas e se cruzava pela feira. Os jovens eram quase todos filhos de emigrantes. Alguns só se encontravam nas férias. Aproveitavam então para matar as saudades, rever os amigos e conversar sobre o que tinham feito ao longo do ano. Sem saber, davam um colorido completamente diferente ao ambiente que se vivia por aquelas bandas, onde após acabar o mês de Agosto, só os mais velhos ficavam na esperança de voltarem a ver os seus familiares mais chegados, daí a mais um ano.
      A esplanada do café Central estava cheia de gente. A manhã estava a chegar ao fim e aproveitavam para descansar um pouco antes do almoço, beber um café ou mesmo uma cervejinha gelada para matar a sede e afastar o calor do meio-dia.
João, após correr a feira à procura de um utensílio rural, sentou-se na esplanada a beber um copo, como sempre fazia. Tinha acabado de se sentar quando apareceu o amigo Daniel.
- Olá! Então agora andas a beber água das Pedras?
- Ai, és tu? Pois claro que bebo água das Pedras. Então querias que já me estivesse a encharcar de cerveja ao meio-dia?
- Pois eu vou beber uma geladinha.
E virando-se para o senhor Francisco que se acercava, pediu uma cerveja gelada para matar a sede.
- Então, foste à feira? – perguntou o Daniel.
- Fui, mas não encontrei o que queria.
- Então, o que procuravas tu?
- Era uma corrente para adaptar ao reboque do tractor. Quero lá fazer uma adaptação e não é fácil encontrar o que quero. Se calhar tenho de ir ao serralheiro para me fazer isso.
- É o melhor que tens a fazer. Isto hoje está tudo mudado. A tradição já não é o que era. Não é o que dizem?
- Pois é. Tens razão – concordou o João. Antigamente não andávamos com estas modernices. Agora queremos tudo e não encontramos nada.
- Mas antigamente também a agricultura era mais difícil. Os meus pais bem se queixavam!
- Ai sim, sim! Eu ainda me lembro de ver as vacas e os bois a lavrarem os campos. Quem é que tinha tractores? Muito poucos!
- Eram tempos difíceis. A agricultura sempre foi uma tarefa difícil.
- Pois foi, mas tempo houve que era de lá que vinha todo o sustento. Quase toda a gente trabalhava na agricultura e era ela que a todos sustentava. Hoje ninguém quer trabalhar na terra!
- Isso já foi há muito tempo! – disse o Daniel.
- Não foi não! Claro que já não foi no nosso tempo. Mas os meus pais falam muitas vezes como era trabalhar a terra no tempo do Salazar. Ele apoiou sempre a agricultura.
- Apoiou como? Se calhar não tinha outro remédio! Não havia indústria.
- Pois a indústria devia ser escassa, mas alguma coisa se tinha que fazer para alimentar as pessoas. Se fizessem como agora que nada se faz no campo, então tinham todos morrido à fome.
- Ora aí está um assunto que o nosso amigo Paulo deve querer abordar. É um tema interessante: a agricultura no tempo de Salazar.
- Tens razão. Vamos propor-lhe esse assunto logo à tarde – rematou o Daniel entusiasmado.
- É isso mesmo. E agora vou almoçar, que já vão sendo horas. A que horas apareces logo?
- Não sei, mas lá pelas seis horas já aqui devo estar – disse o Daniel.
- Então às seis – disse o João levantando-se e dirigindo-se rua acima.
Os dois esperavam que o Paulo aparecesse para lhes falar sobre o assunto que agora tinham abordado.
A feira acabaria durante a tarde e as pessoas partiriam para as suas aldeias e toda a confusão teria o seu fim. Já todos sabiam que era assim mesmo.
Ao final da tarde, os três amigos lá se encontrariam no local habitual.
  Acabada a confusão da feira, os três amigos encontraram-se na esplanada do costume. Sentados e dispostos a passar um bom bocado, começaram por pedir as suas habituais cervejas, companhias certas para um calor de fim de tarde.
- Paulo, temos um desafio para ti – disse o Daniel.
- Desta não te safas – acrescentou o João.
- Também acho, a não ser que tenhas colocado o livro na cabeça – rematou o Daniel num tom irónico.
- Mas estão a falar sobre o quê afinal? – perguntou o João confuso.
- Já que és o espertinho do grupo, fala-nos sobre a agricultura durante a segunda república – pediu o Daniel.
- Oh, essa é fácil. Pois, nesse tempo a agricultura mantinha-se como a principal actividade e com uma produtividade muito baixa devido ao uso de técnicas rudimentares. Estávamos bastante atrasados em relação aos outros países europeus.
- Calma! Estás a querer dizer que o nosso Portugal estava assim tão atrasado em relação aos outros países da Europa? – questionou o João incrédulo.
- Sim, é isso mesmo. Portugal usava técnicas tradicionais, enquanto os outros países usavam já técnicas modernas. Para Salazar, a agricultura era a base da economia, mas nunca nos modernizámos o suficiente para que ela fosse mesmo rentável economicamente.
- Sabem que mais? De tanta agricultura já estou a ficar com sede. Ó senhor Francisco, traga cá mais umas cervejinhas para a rapaziada – pediu o João.
Bem mandado, como sempre, o senhor Francisco não se demorou a trazer a encomenda aos sedentos amigos.
- Então hoje ainda sobre o centenário da República? Perguntou o dono do café.
- Claro que sim. Enquanto não souber tudo não me calo com isso – adiantou o Daniel.
- Pois claro, mas primeiro vou dar um golinho na minha cervejola. Este calor dá cá uma sede! – disse o João
Depois de todos terem matado a sede, continuaram a conversa. Nenhum deles parecia incomodar-se com os transeuntes.
- Agora estou melhor – disse o Daniel. – Mas diz lá, então enquanto os nossos familiares se matavam a trabalhar para terem comida suficiente, os outros com as máquinas e em menos tempo produziam mais?
- Como assim? Não entendi – rematou o João confuso.
- Já explico. Com a evolução da tecnologia e da ciência, eles já tinham máquinas próprias para a agricultura. Quase todos tinham tractores e outras alfaias agrícolas para todos os tipos de terrenos. Ora isto dá muito mais rendimento.
- Ou seja, enquanto eu andava à frente da burra e o meu pai com a charrua atrás a lavrar os terrenos um dia inteiro, os outros faziam isso em meio-dia? – perguntou a laia de conclusão o João.
- E não foste o único – responderam os outros dois.
- A vida foi muito dura para os nossos pais e avós naquele tempo – disse o Paulo.
- Pois, a vida é assim. Hoje já estamos melhor um bocadito – concluiu o Daniel. – Sabem que mais? Já é tarde e a minha mulher está à espera. Vou andando.
Levantou-se e partiu em direcção a casa deixando na esplanada os dois amigos.
-Ó Paulo, tens internet em casa? – perguntou o João. – Precisava de fazer umas pesquisas.
- Sim, tenho. Podes ir a minha casa à vontade quando quiseres. Já sabes andar na net?
- Eu? Nem por isso. É confuso, mas enfim, lá vou andando! Então se não te importas, daqui a uma hora vou ter contigo a tua casa.
- Estás à vontade. Queres ir jantar comigo? Aviso a minha mulher e não há problema.
- O convite é tentador. Bem, como não tenho que fazer, aceito. Já lá vou ter.
Despediram-se com um “até já” e cada um tomou caminhos opostos.
O Sol declinava já no horizonte. Pelas ruas, pouca gente se via àquela hora. Todos se preparavam para ir até casa. O dia chegava ao fim.



Capítulo IV

À hora combinada, o João estava à entrada da casa do Paulo. Este estava a pôr a mesa quando tocou a campainha. Assustou-se e deixou cair um copo que se estilhaçou no meio do chão da sala. Ficou irritado. Foi abrir a porta soltando alguns palavrões pelo caminho.
- Para que tocaste à campainha? Entravas logo, a porta estava aberta. Fizeste-me partir um copo.
- Desculpa, não tinha intenção de te assustar, mas também não ia entrar assim sem mais nem menos. As campainhas servem para nós tocarmos.
- Tens razão. Eu é que fiquei nervoso. Não gosto de partir nada. Como és quase da família podes entrar à vontade.
- Pronto, fica combinado.
O jantar foi do agrado do João que comeu até mais não. Comeu e bebeu. Sim, porque ele bebia bem às refeições e mesmo fora delas.
Depois do jantar, o João foi à casa de banho e demorou mais do que o normal. Paulo, preocupado, bateu à porta e perguntou o que se passava.
- Então, João, caíste na sanita?
- Claro que não! Deram cá uma dores de barriga, que eu nem te conto…
- Eu bem te avisei para comeres menos! Parecia que já não comias há uma semana! A tua mulher não te dá de comer?
- Dar, dá, só que diz que não posso engordar muito porque depois troca-me por outro.
- E tu achas que te vai trocar?
- Eu já não sei nada.
- Deixa-te de parvoíces e sai daí.
- Pronto. Dá-me mais cinco minutos e já saio. Vai ligando o computador.
- Está bem. Se precisares de mais alguma coisa, diz.
O Paulo lá foi ligar o computador, mas sempre intrigado, pois queria saber o que é que o João queria pesquisar. Como ele não tinha dito nada, a curiosidade do Paulo era enorme. Finalmente o João lá chegou. Sentou-se ao computador e iniciou a sua pesquisa. O Paulo fez-se distraído e pôs-se junto à janela tentando ver o que andava o João à procura, quando este o interpelou.
- Olha, já viste isto? – perguntou o João.
- O quê? O que andarás tu a procurar?
- Sabias que a maior parte da população, sobretudo do meio rural, continuava a viver em condições miseráveis? Por isso é que milhares de pessoas abandonaram as suas terras e foram viver para cidades mais industrializadas, como o Porto, Lisboa e Setúbal.
- Sim, sabia. Mas isso foi porque a política de desenvolvimento posta em prática por Salazar não foi suficiente para equilibrar a balança comercial, que continuava deficitária – explicou o Paulo.
- Mas aqui também diz que cerca de um milhão e meio de portugueses emigrou em busca de melhores condições de vida, atraídos pelos elevados salários.
- Sim, isso foi na década de 60, quando emigraram para França, Alemanha e Estados unidos da América – voltou o Paulo a explicar.
- Hum, já vi. Isso é fixe.
- E já agora que estás aí na net, sabes o que é o marcelismo? E que medidas foram tomadas nessa altura? – perguntou o Paulo.
- Mais devagar. Deixa cá ver se encontro aqui alguma coisa. Foi no ano de 1968?
- Sim – disse o Paulo admirado.
- Acho que já sei o que é. Foi quando Salazar adoeceu e teve que ser substituído no governo por Marcello Caetano.
- Ora vês como não és burro.
- As medidas não as sei, mas já vamos ver aqui na internet.
- Acho que já as encontraste. Tu é que não lês o que tens à frente dos olhos – disse o Paulo.
- Pois é, tens razão. Eu é que já estou cansado e já nem sei onde tinha a cabeça. Devia estar a pensar no que as nossas mulheres estarão a fazer.
- Deixa lá as mulheres. Daqui a pouco já vamos mas é dormir.
- Está bem, eu esqueço. Só por um bocado – disse o João sorrindo.
- Fazes bem.
- Vá, vamos lá ver isto. Então a primeira medida foi sobre a censura, não foi?
- Essa foi uma delas. Ouviste falar da PIDE? Nessa altura passou a chamar-se DGS.
- DGS?
- Sim. Direcção Geral de Segurança – informou o Paulo sempre sabedor.
- Bem, se o dizes, quem sou eu para te contrariar.
- Outra medida importante foi autorizar o regresso de alguns exilados políticos.
- Pois, pois! Vamos mas é desligar o computador que já só vejo letras à frente. Outro dia podemos ver o resto. Acho que por agora já chega.
- Mentiroso, tu está é a pensar na mulher – disse o Paulo brincalhão.
- E estou. Aliás, eu penso sempre, não é só à noite – retorquiu o João com um riso maroto.
- Não há quem te entenda.
- Há sim. A minha mulher!
- Talvez nem ela.
- Vá, eu vou andando que já se faz muito tarde. Amanhã combinamos algo lá para a tarde. O Daniel vai ficar admirado com o que pesquisámos – disse o João com ar vitorioso.
- Por mim, tudo bem. À hora do costume, lá estarei. Avisa o Daniel – pediu o Paulo.
- Está bem. Até amanhã.
- Até amanhã.


Capítulo V

O Sol apareceu tão belo que dava vontade de ir passear ou ir à compras com a família, antes que fizesse demasiado calor.
À tarde, depois de toda a azáfama diária, os três amigos encontraram-se na esplanada do café Central para passar mais um bocado alegre e divertido a beber uns copos e a falar de coisas ligadas à República. Era como um concurso para ver quem descobria mais coisas importantes e sabia mais sobre os cem anos de vivências republicanas em Portugal.
O senhor Francisco não demorou a aparecer e a perguntar se queriam as habituais cervejinhas.
- Claro! Venham elas – disse o João.
- Então ontem que andaram a fazer? Ficaram até muito tarde? – perguntou o Daniel.
- Não. Fui jantar a casa do Paulo e andámos a fazer umas pesquisas na internet.
- Pesquisas na Internet? Tu sabes alguma coisa disso? – quis saber o Daniel curioso.
- Não sei muito, mas dá para ir vendo umas coisas.
- E que andaste a ver?
- Umas coisitas sobre a República. Olha que há coisas muito interessantes por lá. Devias lá ir.
- Eu? E pesquisaram o quê?
- Sobre o grande surto de emigração em Portugal e sobre o Marcelismo – informou o Paulo.
- Pois foi isso mesmo. Já não me lembrava bem de algumas coisas – disse o João.
- Que novidade! Eu já sei que nessa cabeça não entra nada – disse o Paulo com ar de gozo.
- Claro que entrou. Eu ainda sei muitas coisas.
- Está bem. Então conta lá sobre isso da emigração – pediu o Daniel.
- Olha, muitas pessoas emigraram para procurar melhores condições de vida e melhores salários porque cá viviam em condições de vida miseráveis – disse o Paulo dando uma ajuda ao João que tinha ficado engasgado.
- Ah, isso sei – disse o Daniel – e sobre o marcelismo também sei alguma coisa.
- Óptimo. Então, ainda alguém se lembra o que foi o MFA? – perguntou o Paulo.
- MFA? – perguntou o João. – Acho que sei, espera. Foi o Movimento das Forças Armadas e surgiu com o 25 de Abril. Foi a Revolução que aconteceu nessa altura devido ao descontentamento das políticas nacionais e da guerra colonial. Derrubaram precisamente o marcelismo e acabaram com o Estado Novo.
- Grande João! – disse espantado o Daniel. – E o que era o Estado Novo?
- Está a gozar comigo? Então não foi o regime de Salazar? – disse o João.
- Salazar? Então não tinha morrido já? – quis saber o Daniel.
- Claro que tinha. Mas governava o Marcello Caetano e havia outro Presidente da República.
- Está a falar do Américo Tomás, certo? – disse o Daniel.
- Estou, claro. Foram presos juntamente com muitos outros – disse o João.
- Vocês afinal até sabem umas coisas – admirou-se o Paulo. – E já agora quem é que governou depois Portugal?
- Acho que foi o António de Spínola. Ele governou até à formação de um governo provisório, não foi assim Paulo? – questionou o Daniel.
- Exactamente e não devem esquecer que o MFA nomeou uma Junta de Salvação Nacional.
- Pois foi – concordou o João. – Afinal tu também andaste a pesquisar.
- Andei sim, mas eu lembro-me do que andei a fazer e tu és um esquecido.
- Esquecido? Eu? Ora, ora. Alguma coisa cá ficou.
- E que sabes mais, afinal? – perguntaram os dois ao mesmo tempo.
- Sei… sei que … que a Junta de Salvação Nacional se comprometeu a respeitar o programa do MFA e a conduzir o país à democratização e tomaram uma data de medidas – disse o João um pouco aflito.
- Medidas? Quais foram essas medidas? – perguntou o Paulo admirado.
- Medidas como a liberdade para a formação de partidos e sindicatos, abolição da censura e a extinção das instituições do Estado Novo, por exemplo. E ainda há mais.
- Mais? Afinal tu pesquisaste mais do que eu imaginava – disse o Paulo.
- Claro que há mais. Iniciaram o processo da descolonização e a organização de eleições livres com a finalidade de fazer aprovar uma nova Constituição da República em 1976.
- Hum, muito bem. Tens aí alguma folha escondida? Como sabes tanta coisa? – perguntou o Daniel.
- Não, não tenho. Por acaso vi isto no livro de História do meu sobrinho e ontem também vi qualquer coisa na internet. – informou o João todo ufano da sua sabedoria.
- E já agora, sabes quem aprovou essa Constituição? – questionou o Paulo.
- Pois, isso não me lembro.
- Eu acho que sei – disse o Daniel – Foi a Assembleia Constituinte.
- Acertaste – disse o Paulo. Bem já chega por hoje. Vamos embora porque está a ficar tarde e já só estamos nós aqui na esplanada.
- Vamos, sim. Está quase na hora de jantar. Já viram como os dias estão a ficar mais pequenos -  perguntou o Daniel.
- Pois estão. Está a acabar-se o Verão – disse o Paulo. – Até amanhã.
- Então amanhã à mesma hora – disseram os outros dois e foram embora, cada um para o seu canto, para junto das suas famílias.
A tertúlia tinha sido bastante animada e positiva. Teriam certamente muito que contar às esposas e aos filhos.


Capítulo VI

Paulo dirigiu-se a casa a pensar no que os seus amigos tinham aprendido e no que a brincadeira sobre a República estava a dar. Na realidade, a brincar pode-se aprender muito. Apesar de desinteressada, estas viagens pelas Repúblicas Portuguesas, estavam a levar a descobertas interessantes e que eles já tinham esquecido. Paulo achava tudo isto muito curioso e salutar.
Ao entrar em casa foi surpreendido por enorme abraço da sua filha Joana.
- Então joaninha! A que se deve esta euforia toda? Parece que já não me vês há séculos!
- Hoje estou muito contente. Tive uma boa nota na aula de Matemática. Fui das melhores.
- É verdade. A tua filha é muito inteligente – disse Lucília, a esposa.
- Pois é. Deve sair ao pai – afirmou o Paulo num tom irónico. – O jantar já está pronto?
- Está sim.
- Estou com fome. A conversa toda com os meus amigos fez fome.
- Então vamos para a mesa – disse a esposa.
Durante todo o jantar o Paulo foi contando à esposa do que tinham falado. Esta foi ouvindo curiosa e de repente perguntou:
- E não falaram da guerra Colonial?
- É verdade! Não falámos disso – admirou-se.
- Isso é importante? – perguntou a Joana.
- Não! Mas esquecemo-nos de falar sobre isto. Temos de abordar isto amanhã.
- E o que é? – continuou Joana inquiridora. – Posso saber?
- Claro que sim. É sobre uma parte da nossa História. Um dia vais ter de saber isto tudo. – rematou o pai.
- Pois. Um dia…
- Claro. Vamos ver um pouco de televisão e depois caminha, sim? – disse o Paulo.
- Vamos. Ainda é cedo para ir à cama – concordou a Joana.
Os minutos passaram depressa, mas Joana não tardou a adormecer encostada ao pai no sofá.
- Joaninha, vamos deitar.
- Já, pai?
- Sim, sim. Amanhã tens de ir à escolinha e já estás cheia de sono.
- Ok. Boa noite papá e mamã.
- Boa noite – disseram os dois.
Paulo e a mulher, não tardaram a fazer companhia à filha. O dia tinha sido longo e o dia seguinte prometia muito trabalho.
A tertúlia do fim de tarde prometia novas descobertas.
A noite trouxe um sono profundo e descansado.
O dia amanheceu esplendoroso e passou rápido. O Paulo estava ansioso para estar com os seus amigos e falar-lhes da guerra colonial.
À hora habitual, Paulo foi ter com os seus amigos. Só o Daniel se encontrava lá.
- Boa tarde Daniel.
- Olá, boa tarde.
-Então o João ainda não veio?
- Veio sim. Está lá dentro no café. Foi encomendar umas cervejinhas.
- Pois claro. O que seria das nossas conversas sem umas cervejinhas – disse o Paulo.
- Seria um grande lago de transpiração. Com este calor ainda derretíamos. A sorte é que o senhor Francisco tem aqui uma boa esplanada e uma sombrinha que é um espectáculo.
- Olha que ele é. O João com as cervejinhas. E a minha? – perguntou o Paulo.
- Olá Paulo. Não sabia que tinhas chegado, mas vem já, descansa.
- Eu espero.
- Então de que vamos falar hoje? – perguntou o Daniel.
- Hoje temos de voltar um pouco atrás, pois esqueci-me de um pormenor.
- Então? – perguntou o Daniel.
- Não falámos sobre a guerra colonial – disse o Paulo.
- Pois não. E o meu pai andou por lá.
Entretanto Chegou o João com a cerveja que faltava.
- Então de que falavam? – quis saber.
- Da guerra colonial – informou o Daniel.
- Ainda não abordámos esse assunto, pois não? – perguntou o João.
- Não. O Daniel estava a dizer que o pai dele andou lá na guerra.
- E andou sim – confirmou o Daniel.
- E onde? Em Angola ou Moçambique? – indagou o Paulo.
- Foi em Angola. Parece que esteve lá mais de dois anos. Veio meio passado da cabeça.
- Faço ideia! Em que ano esteve lá?
- Acho que foi de 1971 a 73, mas não tenho a certeza.
- Foi um período difícil, não foi? – perguntou o João. – Pouco sei dessa guerra – confessou.
- Foi um período de confronto entre as Forças Armadas Portuguesas e os Movimentos de Libertação das antigas províncias ultramarinas de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau - informou uma vez mais o Paulo.
- Ah, já me lembro de qualquer coisa. Essa guerra acabou com o 25 de Abril, não foi? As nossas tropas não gostavam muito de ir para o Ultramar e foi por isso que se revoltaram.
- É mais ou menos isso. Vês como sabes as coisas – disse o Daniel.
- Pois é. Com a mudança do rumo político nacional, o empenhamento militar das Forças Armadas Portuguesas deixou de fazer sentido. Novos dirigentes anunciaram a democratização do país, aceitando reivindicações de independência das colónias – informou o Paulo.
- Então porquê fazer essa guerra?! – desabafou o João.
- Pois. Para os portugueses, a guerra sustentava-se pelo princípio político de defesa, baseando-se no conceito de nação pluricontinental e multi-racial – acrescentou o Daniel.
- Fogo, Daniel! De onde tiraste isso? Estás a ficar como o Paulo, com inteligência a mais! – concluiu o João.
- Olha, tenho passado pela biblioteca municipal e tenho lido umas coisas desde que andamos com estas conversas de República.
- Fazes bem. Esses livros dão muito jeito – disse o Paulo.
- Mas estavas a falar de quê? – disse o João com vontade de saber mais.
- Estava a falar dos portugueses, claro. E dos movimentos de libertação das colónias.
- Pois, os movimentos de libertação justificavam-se com base no princípio inalienável de autodeterminação e independência, num quadro internacional de apoio e incentivo à luta – concluiu o Paulo.
- E quem ganhou foram esses movimentos, certo? – perguntou o João.
- Sim, pois os portugueses desistiram da guerra com a revolução dos cravos em 1974 – rematou o Paulo.
- Hum, sabem uma coisa? O nosso mês de Agosto está quase a terminar – adiantou o Daniel.
- Pois está e as férias também. Até os emigrantes já se foram embora – disse o Paulo.
- Pois já. Os meus irmãos mais velhos já se foram embora para França e para a Suíça. Antigamente como não havia condições, emigraram e acabaram por ficar lá até hoje! – adiantou o João.
- Claro. Eu também tenho irmãos no estrangeiro – disse o Paulo. – E tu, Daniel?
- Eu também, como sabes. Tenho dois lá fora e outros dois cá em Portugal.
- Foram à procura de uma vida melhor. E estão bem? – quis saber o João.
- Estão, felizmente. Bom, vamos embora que já são horas. Ainda tenho de passar pela biblioteca para requisitar mais uns livros e entregar os que tenho em casa – disse o Daniel.
- Fazes bem em ler. O João também devia ler uns livros para aprender umas coisitas – adiantou o Paulo.
- Eu, ler? Demoro séculos a acabar um livro.
- Não interessa. O que é preciso é ler – disse o Daniel.
- Vou tentar! Pode ser que arranje tempo – concluiu.
Levantaram e despediram-se. Mais um dia de conversa sobre a República chegava ao fim.
                                                                                             
Capítulo VII

Agosto despediu-se e o Setembro trouxe de regresso as aulas. As escolas depressa voltaram a ter movimentação e a vila ficou muito mais animada.
O calor de Verão já se não fazia sentir, mas o tempo estava ainda muito quente.
Este era o ano do centenário da implantação da República em Portugal e já se adivinhava a festa que se iria viver nas comemorações de Outubro.
Os três amigos continuaram os seus encontros habituais e o tema continuava a ser o mesmo. As últimas conversas centravam-se mais na actualidade governativa, já que era a mais conhecida. A terceira República dominava nas conversas da esplanada do café Central entre os amigos já nossos conhecidos.
Apesar de o tempo ainda continuar quente, na segunda semana de Setembro fizeram-se ouvir as primeiras trovoadas que anunciavam o fim do Verão e a chegada do Outono, que iriam tornar os dias mais pequenos.
No entanto, nem estes intensos barulhos dos trovões poderiam demover os três amigos de realizarem as suas habituais tertúlias republicanas no café Central.
João foi o primeiro a chegar, pois estava ansioso para fazer umas perguntas aos seus amigos, acerca de uma das últimas conversas que o tinham deixado com o bicho atrás da orelha.
À hora habitual, após o trabalho, chegaram o Paulo e o Daniel que logo repararam que algo se passava com o João e ficaram mesmo assustados, pensando que algo de errado tinha acontecido.
- Boa tarde, João – cumprimentaram os dois.
- Boa tarde amigos. Ainda bem que chegaram.
- Passa-se alguma coisa, João? Estás com uma cara! – disse o Daniel.
- Não é nada. Mas estive a pensar naquela história que falaram no outro dia sobre os vossos irmãos terem ido embora para o estrangeiro, lembram-se? Pois esqueci-me de vos fazer umas perguntas que me têm deixado curioso.
- Ah, então é por isso que estás tão ansioso? – exclamaram os dois amigos em uníssono.
- Nota-se assim tanto?
- Sim, por acaso até se nota, mas isso não é razão para tanta ansiedade, porque eu e o Daniel vamos já satisfazer esse teu bichinho curioso. Não é Daniel?
- Claro que sim, isto é, espero conseguir esclarecer a tua dúvida. Até mesmo para bem da tua saúde, senão ainda te dá um enfarte de curiosidade – disse o Daniel num tom irónico.
- Pois bem, então nós na última conversa falámos da revolução dos cravos de 1974, no entanto ninguém me chegou a dizer nem onde decorreu essa revolução, nem como foi combinada, nem nada disso. Sim, porque eu acredito que para a combinar, deve ter sido o cabo dos trabalhos, uma vez que existiam as forças de repressão como a PIDE, que não deixavam ninguém utilizar a liberdade de expressão e de reunião e controlavam os meios de comunicação social.
- Tens toda a razão, João – disse o Daniel. Olha, eu andei a ler umas coisas sobre isso e posso dizer alguma coisa. Realmente essas forças existiam, mas o nosso povo português, naquela época, já possuía homens de grande sabedoria e coragem, com habilidade e descrição, pois eles para não serem apanhados pela PIDE nem por outras forças de apoio ao regime, combinaram que ao passar na rádio a música “E depois do adeus” de Paulo de Carvalho, estaria na hora de dar início ao golpe de Estado. A música passou às 22h55m e todos os militares do Movimento das Forças Armadas perceberam que a 1ª fase do golpe de Estado tinha sido iniciada.
- Sim, mas não foi só essa a música que marcou a revolução – disse o Paulo.
- Ai não! Então ainda houve outro sinal? – perguntou o João entusiasmado.
- Sim. Ás 00h20m, quando foi transmitida a canção “Grândola Vila Morena” de Zeca Afonso, confirmava-se o início das operações.
- Uau! Então desencadearam uma revolução através de música! Que espectáculo. Muito original! E quando começou o movimento revolucionário? Ou melhor, onde, porque o movimento não deve ter começado só no dia 25 de Abril, não é verdade?
- Claro! Levou muitos meses a ser preparado pois era necessário que algumas forças de apoio ao regime aderissem também ao movimento. Aliás, no dia 24 de Abril, um grupo de militares comandados por Otelo Saraiva de Carvalho, instalou secretamente o posto de comando do movimento golpista, no quartel da Pontinha, em Lisboa – disse o Paulo vitorioso.
- Então e a revolução no dia 25, como foi que a população aderiu?
- Aderiu muito bem. Aderiu em massa! – disse o Daniel.
- O golpe militar de 25 de Abril teve a colaboração de vários regimentos, mas o povo, logo ao amanhecer, juntou-se aos soldados revoltosos – disse o Paulo.
- E as forças de apoio ao regime, não reagiram? – perguntou o João.
- Reagiram e levou à morte de quatro pessoas, mas como vês, esta revolução foi até muito pacífica – disse o Daniel.
- Pois de facto… Mas como conseguiram derrubar o governo? – questionou o João.
- Olha, ocuparam o Terreiro do Paço logo às primeiras horas da manhã. Os militares da Escola Prática de Cavalaria de Santarém, comandados por Salgueiro Maia, ocuparam esse espaço e depois seguiram para o Quartel do Carmo onde se encontrava o presidente do governo, Marcelo Caetano, que acabou por se render – respondeu o Paulo.
- Só mais uma pergunta. Porque é que ficou conhecida a revolução de 25 de Abril, por revolução dos cravos? – perguntou o João com a curiosidade já quase saciada.
- Irra, tu hoje pareces uma criança de seis anos a fazer perguntas!!! Mas vá lá, que é sobre coisas interessantes – disse o Daniel num tom alegre.
- Pois bem, ficou conhecida como a revolução dos cravos porque uma florista deu um cravo vermelho a um soldado e este colocou-o no cano da sua espingarda. Os outros soldados, vendo a rua cheia de floristas, imitaram-no, colocando cravos vermelhos nos canos de todas as armas – concluiu o Paulo com um ar sabedor.
- Óptimo. Fiquei totalmente esclarecido. Foi uma aula de história e peras! – afirmou o João todo contente.
- Sim, pois foi. Só que podia ter sido muito melhor, já que falámos, falámos e beber, que também é bom, nicles – disse o Daniel rindo.
- Pois realmente, até estou com a garganta seca – concordou o Paulo.
- É verdade – constatou o João. Tal era o entusiasmo que nos esquecemos de beber. Ó senhor Francisco, traga-nos aí três cervejolas que assim até digerimos melhor esta nossa refeição revolucionária sobre o 25 de Abril – disse o João rindo.
A tarde estava quase passada. Os três amigos beberam e riram durante mais algum tempo. Após algum tempo, regressaram a casa, felizes por saberem um pouco mais da história política desta grande pátria que é Portugal.
Na avenida, já pouca gente circulava. A noite aproximava-se a passas largos e as pessoas regressavam após um dia de trabalho. Em casa, esperavam as esposas e os filhos pelos retardatários como o João. Pensativo, subia a avenida, recordando tudo o que tinham falado sobre a revolução dos cravos. Claro que ele já era nascido na altura, mas agora não se podia lembrar de grande coisa com a idade que tinha. Teria talvez cinco ou seis anos. No tempo de escola, pouco ligou a estas coisas. Estudar nunca foi do seu agrado. Sempre se prendeu mais às coisas da terra e foi o que acabou por fazer. A quinta era a menina dos seus olhos. Gostava de ver as colheitas crescerem, os frutos amadurecerem e o gado a passear-se pelos pastos. Falar sobre os acontecimentos da nossa República, era aliciante e ele estava a gostar. Nunca tinha pensado muito na História de Portugal, especialmente no tempo da República. Cem anos era muito tempo e ele nunca tinha reflectido sobre isso.
Parou e olhou para ver onde tinha deixado o carro. Estava um pouco mais acima. Entrou e dirigiu-se a casa. Já eram horas e como sempre teria de dar a mesma desculpa à mulher. Conversas de café!
O caminho não era longo. Depressa se viu junto a casa. Estacionou junto ao caramachão da entrada e abriu a porta de casa.
Foi direito à cozinha onde a esposa preparava o jantar.
- Então, João, só agora?
- Ainda venho a tempo, não?
- Pois! Foi mais uma hora de conversa lá no café do tio Francisco, não foi?
- Sabes que sim. Que outra coisa poderia ser? È sempre o mesmo. Conversa e mais conversa sobre a nossa República. Para o mês que vem já faz cem anos, sabias?
- A nossa República! Quero lá saber! Pois isto está bonito, está! É só miséria, só crise e mais crise. Que República a nossa?!
- Tens razão Maria. Temos que ir vivendo com os tempos.
Maria Inês era uma mulher atraente. Mais nova uns anos que o marido, também ela tinha estudado na mesma escola e lá se conheceram e namoraram. Foi um longo namoro que deu em casamento estável. Nem um nem outro foram além do secundário, mas singraram nas suas vidas, embora com dedicação ao campo e com muito trabalho. Orgulhavam-se do que tinham construído. João sabia a mulher que tinha e apreciava a ajuda que ela lhe dava. Além disso, o filho que tinham foi criado com muito amor e carinho e era o espelho de todo esse cuidado. Manuel João era um rapaz simpático e um bom estudante. Andava na Universidade a tirar o curso de Engenharia e esperava um dia vir a ser uma pessoa importante lá na terra. Mas os tempos não eram para euforias e tanto João como Maria Inês sabiam que ainda tinham muita despesa pela frente até o filho sair com o curso nas mãos.
- Pois os tempos não estão nada bons – rematou Maria.
- Pois foi sobre isso que estivemos a falar no café Central. Falámos sobre a Revolução do 25 de Abril.
- Isso já foi há tanto tempo!
- Nem por isso. Nós éramos pequenitos e não nos lembramos, mas não foi assim há tanto tempo.
- E isso que interessa João?
- Olha, interessa porque também os tempos eram maus e as pessoas revoltaram-se. Não estás a dizer que agora os tempos estão maus?
- E queres que agora também haja outra revolução?
- Eu não quero, mas se as coisas continuarem assim, não sei onde iremos parar e quando as pessoas estão mal, revoltam-se.
- Ora deixa-te disso. Nós revoltamo-nos contra a terra e as sementeiras e já basta.
- Essa está boa Maria! Pois revoltamos – concordou, rindo.
- Já tens fome?
- Tenho sim. O que fizeste para o jantar?
- Cozi umas batatas com couves para comer com bacalhau. O nosso Manuel João não gosta, mas tu gostas.
- Gosto, gosto. Bacalhauzinho com batatinhas é muito bom.
- Pois é isso que vamos comer. Já não falta muito para estar pronto. Ajudas-me a pôr a mesa?
- Como sempre, não é? Onde está a toalha?
- Vê ali na gaveta da esquerda.
João estava habituado a estas lides domésticas e não se envergonhava e até fazia questão de dizer aos amigos que ajudava a mulher. O seu machismo acabava na cozinha. Os maravilhosos pitéus que a mulher preparava conseguiam deitar por terra todos os laivos de macho transmontano, rendendo-se definitivamente perante tais atributos femininos.
Depois do jantar, Maria Inês não perdoava a sua novela favorita. Ali passava o tempo vivendo as personagens e exclamando, a cada passo, as nuances do enredo, quando não concordava ou a surpreendiam. João acompanhava-a por algum tempo. Depressa adormecia no sofá e só quando Maria Inês o acordava, ele se separava dele para ir até à cama. Era uma rotina que ambos viviam e não questionavam. O descanso era sempre merecido e eles também sabiam que o mereciam.
                                                                 
Capítulo VIII